quarta-feira, 29 de abril de 2015

O Ceará na vanguarda do Semiárido (Jornal O Povo)

O Ceará na vanguarda do Semiárido

Dono de legislação para uso de água mais antiga que a nacional e de órgãos públicos renomados, Ceará assume a vanguarda das pesquisas científicas sobre convivência com o Semiárido


A complexidade do Semiárido não é uma barreira intransponível. Desenvolver soluções de tecnologia e de gestão torna-se, a cada dia, um processo mais legítimo. Quem vive nessa região tem uma certeza marcada: as precipitações podem rarear por várias quadras chuvosas e o risco de ficar sem água nas torneiras é real.
Por isso, durante décadas, foram elaboradas saídas - pelos órgãos públicos e pelas universidades - para o Ceará conseguir conviver com a ausência de precipitação por anos consecutivos. Desde 2012 com chuvas abaixo da média histórica, seria presumível já ter entrado em colapso total. Mas, até agora, a maioria das zonas urbanas do Estado consegue manter o mínimo de abastecimento – utilizando adutoras, poços profundos ou os controversos carros-pipa.
“Nós estamos tomando banho e bebendo água em Fortaleza por causa da maior solução hídrica já feita, o Açude Castanhão. A cisterna é boa, mas não resolve o problema para longos períodos e nem para uma metrópole”, defende Marco Aurélio Holanda, vice-diretor do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). O problema da região semiárida, explica o professor, não é somente a ausência de precipitações – mas a composição do solo e as altas taxas de evaporação.

A maior parte do Ceará é composta por rochas que não filtram os líquidos. “Por isso, muitas vezes, os poços são cavados e não conseguimos extrair água ou acabamos encontrando água salobra. Se não houvesse o (Açude) Castanhão, estaríamos em uma crise hídrica severíssima”, relata Marco.


Hoje, segundo informação fornecida pelo Instituto Nacional do Semiárido (Insa), o Ceará tem metade da capacidade de armazenamento hídrico de todo o Semiárido. O Estado se destaca - conforme pontua Salomão Medeiros, diretor adjunto do órgão -, não apenas pela infraestrutura construída ao longo de décadas, mas principalmente pela forma como conduziu o gerenciamento da água disponível. “É um estado de vanguarda nas questões de água. A legislação estadual é mais velha do que a lei nacional. A UFC é reconhecida em âmbito nacional e internacional por pesquisas e estudos desenvolvidos sobre o tema. O Ceará é utilizado como exemplo”, afirma Salomão.

Aporte hídrico
Apesar de estar com apenas 19% do volume total de água nos reservatórios, o Ceará é destaque quando consideramos o armazenamento hídrico do Semiárido. Fruto da política de açudagem implantada ao longo de décadas, a capacidade de acúmulo é superior aos outros estados nordestinos. Segundo João Abner Guimarães, docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a grande contradição é não conseguir distribuir esta água para todas as regiões do Estado. “O Ceará é a experiência mais bem sucedida no Nordeste em recursos hídricos, mas ainda precisa socializar os benefícios dessa estrutura”. O professor lembra que, diferente de outros locais, o ordenamento das adutoras é relativamente curto. “São ligações de somente, doze ou quinze quilômetros, em sua maioria. São poucas as ligações que ultrapassam os cem quilômetros”, pontua.

Neste domingo, Dia Mundial da Água, o Ciência & Saúde debate a importância das novas tecnologias para a convivência com o Semiárido, as ações pontuais para mitigar efeitos da seca e o papel da universidade na busca de soluções. Boa leitura!
Números149 é a quantidade de açudes monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) no Ceará129 é o número de açudes que apresentam volume total inferior aos 30%18.797hm³ é a capacidade de armazenamento hídrico do Ceará. Hoje, o Estado tem 19% do volume total

DICIONÁRIO
O que é o Semiárido? Área geográfica onde as chuvas são bastante irregulares e o solo é raso. Essas características geram longos períodos de estiagem. Cobrindo quase 8% do território nacional, o Semiárido abrange os estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e Minas Gerais. Há períodos de muita chuva, alternados por épocas de precipitação incipiente.Reportagem do Jornal O Povo em 22.03.2015http://www.opovo.com.br/app/opovo/cienciaesaude/2015/03/21/noticiasjornalcienciaesaude,3409467/o-ceara-na-vanguarda-do-semiarido.shtml

quarta-feira, 8 de abril de 2015

O SEGREDO DA ÁGUA – A BASE PARA UM NOVO MUNDO



Bernd Walter Mueller

O SEGREDO DA ÁGUA – A BASE PARA UM NOVO MUNDO
Restabelecer o Ciclo Hidrológico através da Criação de Paisagens de Retenção*)

Baseado num discurso livre de Bernd Müller – Maio de 2011
Traduzido do inglês por Rui Braga e Oriza Curado

“Água, energia e nutrição são de acesso livre a toda a humanidade!”
(Dieter Duhm, Manifesto de Tamera para uma Nova Geração no Planeta Terra.)

Coloco esta citação no início do meu discurso porque quero que, frequentemente, vejam tanto quanto possam esta imagem tão intensa de um mundo curado. Não nos podemos conformar com esta situação em que algo que é perfeitamente possível de ser realizado parece-nos ser uma utopia irreal. É possível viver num mundo no qual todo o ser humano tem acesso livre à água, energia e nutrição. Ideias semelhantes foram descritas há mais de oitenta anos atrás por Viktor Schauberger, um génio brilhante na investigação da água, um pioneiro e um líder de opinião ao mais alto nível que, já naquele tempo, previa os problemas globais que hoje enfrentamos e demonstrava como estes poderiam ser resolvidos. O pontochave da solução está na relação correcta com a água. Neste sentido, gostaria de dirigir o meu discurso para a questão da água. Água é vida. E onde há vida, há nutrição e energia.

O período de 2010 a 2020 foi declarado pela Organização das Nações Unidas como sendo a “Década das Nações Unidas para os Desertos e o combate à Desertificação”. A desertificação progressiva é, hoje em dia, um dos maiores problemas globais. Considera-se árida mais de 40% da superfície terrestre do planeta. Na Europa e aqui no sul da Península Ibérica, por exemplo, o processo de desertificação é dramático. Um terço da área de Espanha é terreno árido. Ainda assim, a maioria das zonas áridas encontra-se nas regiões mais pobres do nosso planeta Terra.

Actualmente, encontra-se privada no acesso à água potável de boa qualidade milhares de milhões de pessoas. Apesar de ainda o tentarmos ignorar sabemos que, entre as causas responsáveis, está o estilo de vida praticado nos países industrializados. Um estilo de vida que a cada dia, a cada hora e a cada minuto, contribui para que em outras zonas do planeta existam crianças a adoecer e a morrer devido ao consumo de água não potável, seres humanos a lutar pelas suas últimas reservas e animais a morrer de sede.

A água, originalmente uma fonte de vida, é hoje motivo de guerras, disputas de poder, doenças e fonte de um sofrimento incrível. Neste sentido, em 2008, o Presidente Boliviano Evo Morales exigiu na sua proposta “Dez Mandamentos para Salvar o Planeta, a Humanidade e a Vida”, que se tomassem medidas para lidar com esta crise global da água e para se declarar o acesso à água como parte integrante dos direitos humanos. Estou plenamente de acordo com esta exigência. A razão pela qual faço este discurso é para que todas as pessoas e animais recuperem o acesso livre à água potável de boa qualidade. Foi com este objectivo que desenvolvemos o projecto das Paisagens de Retenção e das “universidades modelo”.


A DESERTIFICAÇÃO COMO RESULTADO DA GESTÃO INCORRECTA DE ÁGUA
Nós, seres humanos, temos conhecimento suficiente para transformar desertos e semidesertos em paisagens repletas de vida, ricas em água e nascentes. Na maioria dos casos, a desertificação não é um fenómeno natural, mas o resultado de uma gestão incorrecta da água à escala mundial. Os desertos não são fruto da escassez de água das chuvas, são antes a consequência de um tratamento incorrecto, pelo ser humano, da água.

Um exemplo: a nossa região, o Alentejo, é considerada terreno semi-árido. Ainda assim, tem chovido intensamente nesta última semana. A quantidade de precipitação nestes últimos dias teria sido suficiente para satisfazer todas as necessidades de consumo de água potável e de uso doméstico de toda a população desta área. Apesar disto, a água acabou por se escoar sem qualquer tipo de aproveitamento, tendo até um efeito destrutivo: varreu o solo fértil, erodiu a fundação das pontes e inundou estradas, aldeias e cidades. As pessoas estão agora ocupadas com a reparação dos estragos que lhes consome tempo e dinheiro. Na próxima época das chuvas, o mesmo cenário irá repetir-se e ninguém consegue ter tempo para pensar em investir em novos sistemas que proporcionem ao longo do ano o acesso à água ao mesmo tempo que previnem inundações.

Em Portugal, o inverno é abundante em chuva e os verões são bastante secos. Há poucas décadas atrás, o sul de Portugal apresentava-se como uma região onde até no verão as ribeiras se mantinham, transportando água ao longo do ano inteiro. Hoje em dia, estas apenas enchem durante a época das chuvas, permanecendo secas durante o resto do ano. O ecossistema está em desequilíbrio. Este cenário repete-se por todo o mundo, independentemente da região climática. Por todo o lado, vemos os efeitos destrutivos das cheias e dos deslizamentos de terra com consequências devastadoras para os seres humanos e para a natureza. Chamamos a isto “catástrofes naturais” quando, na verdade, são catástrofes criadas pela intervenção dos seres humanos na natureza.


O PEQUENO CICLO HIDROLÓGICO
Como é que podemos alterar esta situação, tanto a nível local como global? O que é que significa uma mudança de sistema em termos de gestão de água e como é que podemos iniciar este processo? Para encontrar respostas a estas perguntas, teremos de analisar novamente a situação que, hoje em dia, encontramos por todo o globo.

Este é o pequeno ciclo hidrológico (ou ciclo hidrológico parcial) como foi descrito por Viktor Schauberger: a água evapora-se, forma nuvens e precipita-se. A seguir, a chuva atinge um solo que, fruto das pastagens e da desflorestação, se encontra agora incapaz de absorver a água. A vegetação encontra-se enfraquecida pelo consumo exagerado de pastagens e a camada superficial do solo é levada pela chuva. O solo desprotegido aquece e, uma vez que a sua temperatura é superior à temperatura da chuva, este perde a capacidade de a absorver. O solo torna-se assim árduo e fechado e a água da chuva é escoada. Esta acumula-se depois em grandes caudais que transportam rapidamente a água. Neste processo, qualquer camada de solo superficial ou de terra fértil ainda existente é escoada juntamente com a água, intensificando o processo de erosão.

Os cursos velozes de água enchem rapidamente os rios e as ribeiras. Com as chuvas intensas, estes transportam grandes quantidades de solo e de outros materiais que depois não têm forma de ser depositados nas curvas do rio. A água já não se move sinuosamente pela terra, os rios foram endireitados e as suas margens foram reforçadas. O solo precioso, tão necessário em terra firme, sedimenta-se agora pelo rio abaixo. Os cursos de água tornam-se assim progressivamente superficiais, abrindo brechas nas margens e, especialmente nas cidades à beira-rio, provocam inúmeros estragos. No pequeno ciclo hidrológico temos rios que, ao invés de transportarem água limpa de nascente, carregam agora água poluída e enlameada. Já não existem espaços onde a água possa repousar, amadurecer e enriquecer-se com minerais e com informação. Quando observo todos os rostos jovens presentes nesta sala, relembro-me que são raros os jovens europeus que ainda conhecem caudais com água limpa de nascente.


O ESGOTAMENTO DO LENÇOL FREÁTICO
A água torna-se escassa debaixo da terra porque já não tem condições para se infiltrar. A vida no solo ressente-se devido à seca, os microrganismos retiram-se, a fertilidade da terra diminui dramaticamente e o número de plantas e animais em condições de sobreviver torna-se gradualmente menor. A seca e a perda de biodiversidade são os indícios mais claros do processo de desertificação.

O lençol freático decresce a nível mundial e de forma dramática. As reservas globais de água potável estão a diminuir. A não ser que encontremos uma forma de parar este processo enfrentamos, nesta questão, um fenómeno actual cujas consequências conduzem a cenários apocalípticos. A força de contra pressão outrora existente no solo desaparece devido à queda do lençol freático. Na ausência de obstáculos, a água salgada infiltra-se profundamente no solo e as reservas de água doce tornam-se gradualmente salgadas. O ecossistema atinge então o ponto de viragem, uma situação praticamente irreversível. Este processo já está em curso em diversas áreas costeiras. Aqui, na Península Ibérica, também os furos e os poços estão a tornar-se salgados.

Mas que futuro se pode esperar para a humanidade se não existir água potável disponível? Não podemos virar as costas e permitir que aconteça algo que pode ser prevenido. Já existe conhecimento para solucionar este problema, agora só temos de o colocar em prática. Nós sabemos: não é assim que o planeta Terra está destinado a ser. Não é assim que a coexistência entre os seres humanos, os animais e o planeta está destinada a ser. Não é assim que a vida está destinada a ser.


O GRANDE CICLO HIDROLÓGICO
Observemos de novo o cenário de equilíbrio. Este é o grande ciclo hidrológico (ou o ciclo hidrológico completo): a chuva cai na terra e é absorvida por uma camada superficial de solo que absorve a água como uma esponja. Não foi assim há tanto tempo que em Tamera todo o território estava coberto por uma camada de solo fértil, atingindo até cerca de meio metro de profundidade. Este cenário observava-se em todo o território português e pela Europa em geral. Esta camada superficial de solo protegida do sol e amparada pelas raízes da flora existente absorvia a chuva e dava tempo às águas para se infiltrarem mais profundamente no terreno, enchendo as reservas da terra.

Desta forma, a zona subterrânea do corpo terrestre actuava como um órgão de reserva. Debaixo da terra, a água descansava em diferentes profundidades, às vezes por longos períodos de tempo. Ainda sabemos muito pouco acerca do que realmente acontece à água a essa profundidade e nessa escuridão. Sinto esta fase do ciclo hidrológico como a parte “feminina”, ou como a face da “alma” do ciclo hidrológico. O que podemos dizer é que nessa zona a água amadurece, mineralizando-se e absorvendo informação. Esta capacidade de armazenar informação é uma das qualidades mais essenciais e misteriosas da água.

A água arrefece a diferentes profundidades no corpo terrestre saturado. A água mais fria sobe então até à superfície na forma amadurecida de água de nascente. Esta tem um enorme poder de cura para o planeta e todos os seus habitantes. Os rios e as ribeiras transportam esta água de nascente e, movendo-se sinuosamente de acordo com a natureza do seu Ser, geram um efeito regenerativo no solo. Entretanto, à medida que a água flui ao longo do seu percurso, progressivamente, vitaliza-se a si própria. Nas margens destes cursos de água, onde a vida se revela, desenvolvem-se variados biótopos.

A água move-se contínua e constantemente no grande ciclo hidrológico. O solo actua como um regulador, absorvendo grandes quantidades de água de uma só vez, libertando-a depois lentamente. Desta forma, previnem-se as cheias. Ao mesmo tempo, os caudais transportam água ao longo de todo o ano. Atinge-se o equilíbrio entre a época das chuvas no inverno e a época seca no verão. Isto aplica-se a todas as regiões climáticas. Este grande ciclo hidrológico no qual o corpo terrestre cumpre novamente o seu papel cria estabilidade e equilíbrio em qualquer lugar.


REABILITAR A NATUREZA, CRIANDO PAISAGENS DE RETENÇÃO
Hoje em dia, desapareceu da maior parte da superfície terrestre esta camada de húmus no solo. Nesta última década, o processo de erosão progrediu de forma tão rápida e extensiva que já se pode falar em desastre global. Por esta razão, não podemos perder tempo com a criação de ecossistemas que só após 30 ou 40 anos começam a produzir uma fina camada de húmus no solo. Precisamos deste efeito de esponja estabilizador mais cedo. Temos de encontrar uma forma de proporcionar no solo esta absorção de água, mesmo na ausência de húmus no solo, para completar o ciclo hidrológico. Foi neste sentido que desenvolvemos o projecto da paisagem aquática.

As Paisagens de Retenção são sistemas que têm como função restaurar o grande ciclo hidrológico através da retenção das águas pluviais. A paisagem de retenção de água é composta por uma série de bacias interligadas de retenção dos pequenos riachos aos grandes lagos nas quais a água das chuvas é captada por barragens construídas a partir de materiais naturais. Estas bacias de retenção não são seladas com betão, nem com películas artificiais. Desta forma, a água pode infiltrar-se lentamente no solo, a um ritmo constante.

O conceito de “Paisagem de Retenção” relaciona-se sempre com o tópico de reabilitação da natureza. A construção destas paisagens de retenção de água é uma resposta activa e eficaz ao estado actual de destruição da natureza. Em Tamera, este conhecimento chegou até nós através de Sepp Holzer, um austríaco especialista em Permacultura com o qual temos cooperado intensamente desde os últimos anos. Qualquer região habitada por seres humanos é passível de incorporar Paisagens de Retenção. Estas podem e devem ser criadas em todos os locais onde hoje encontramos ecossistemas destruídos ou degradados, em todos os tipos de solo, em todas as regiões climáticas, em todas as encostas e, especialmente, em zonas com pouca precipitação onde são absolutamente necessárias. Quanto menos precipitação existir num ecossistema e quanto maior for o intervalo entre as épocas de chuva, maior urgência existe na criação de paisagens de retenção de água. Até nas regiões tropicais, onde a chuva é abundante, as Paisagens de aquáticas representam um passo enorme na reabilitação da natureza.

A Paisagem de Retenção substitui, de certa forma, a frágil camada de húmus no solo que após a remoção de uma floresta é, por vezes, completamente escoada numa única época das chuvas. Consequentemente, através da sua capacidade de absorção de grandes quantidades de água, as Paisagens de Retenção contribuem para a prevenção de deslizamentos de terra que, hoje em dia, têm cada vez mais a sua origem nas chuvas intensas. Assim, contribuem também de forma directa para salvar vidas humanas. Talvez ainda existam no planeta zonas florestais nas quais não é necessário intervir devido à existência de húmus no solo em quantidade suficiente. Infelizmente, estes são apenas casos isolados.

Neste momento, as Paisagens de Retenção são o impulso regenerativo que o planeta e todos os seus habitantes necessitam. Estas podem e devem ser criadas em todos os locais onde as pessoas recuperaram a força, a coragem e, obviamente, o conhecimento necessário para as construir.

Neste sentido, precisamos agora de uma direcção e de um poder comum e determinado. Para criar Paisagens de Retenção de Àgua por todo o mundo é necessária a criação de centros especiais de educação. A estes centros de educação damos o nome de “universidades modelo”. Nestes locais, é ensinado o funcionamento das Paisagens de Retenção de modo teórico e prático. Desta forma, é iniciado um processo de mudança de mentalidade que inclui, naturalmente, todos os outros aspectos da vida humana. Uma paisagem para a retenção de águas pluviais só pode funcionar de forma sustentável quando o indivíduo e a vida social estão reintegrados com a natureza e com as ordens mais elevadas da criação.

Como funciona essa reintegração nos dias de hoje e que conhecimentos tecnológicos e sociais estão nela envolvidos devem nestes modelos ser os tópicos investigados e ensinados a todos aqueles que procuram este conhecimento. Em última análise, este processo de mudança de mentalidade só será completado quando deixar de existir um único ser vivo na Terra ao qual falte água, nutrição, ou compaixão humana.


CONHECER O SER DA ÁGUA
O primeiro passo para mudar a mentalidade começa com a água em si. A bacia de retenção de água não é apenas para ser compreendida ao nível técnico, ela pretende também dar a uma nova geração de engenheiros a compreensão do Ser da água. As bacias de retenção de água têm de ser construídas de forma a prevenir a estagnação e a promover a deslocação da água de acordo com o seu Ser.

A água não é só uma substância física ou química passível de ser manipulada de acordo com a conveniência da humanidade, ou das normas industriais. A água é um ser vivo. Nós, enquanto civilização moderna temos de recuperar este conhecimento. Por este motivo, a forma das bacias de retenção de água não é arbitrária. Nós observamos a água: como é que ela se quer mover? Que forma deverão ter as margens? Que temperatura e que diferenças de temperatura deverão existir? Será que gosta de ondulação? Todos estes aspectos são incorporados no nosso trabalho.

Como qualquer ser vivo, a água precisa de ser livre para se mover de acordo com o seu Ser. A água gosta de se mover sinuosamente, de se enrolar e de descrever curvas e espirais. Desta forma, ela mantém a sua frescura e vitalidade. Através destes movimentos, purifica-se a si própria ao mesmo tempo que abranda o seu ritmo e se infiltra no corpo terrestre.

Ao definir a forma das bacias de retenção de água existem três princípios importantes a respeitar:
. O lado mais comprido da bacia de retenção tem de estar, se possível, alinhado com a direcção predominante do vento. Desta forma, o vento sopra na superfície mais longa da bacia, criando uma ondulação que oxigena a água. O oxigénio é um elemento importante para a purificação da água. O vento e as ondas transportam partículas de detritos para as margens onde depois estes ficam presos a plantas aquáticas e são, eventualmente, absorvidos.
. As margens nunca são endireitadas ou reforçadas. Estas descrevem formas serpenteantes com inclinações diferentes que proporcionam os redemoinhos e o enrolar da água. Em pelo menos uma das partes da margem devem ser introduzidas plantas aquáticas ou plantas que cresçam nas margens.
. Devem ser criadas tantas zonas rasas como profundas. Desta forma, surge uma termodinâmica saudável na água devido à interacção entre as temperaturas das diferentes zonas. As áreas da margem protegidas do sol apoiam este processo. Assim, os diversos organismos aquáticos encontram o seu habitat correspondente.

A barragem da nossa bacia de retenção de água é construída a partir de materiais naturais, não é usado betão, nem películas artificiais. A camada vertical isolante é constituída por material tão fino quanto possível, idealmente argila, sendo o mesmo preferivelmente extraído do material escavado nas zonas profundas. Esta é depois ligada com uma outra camada de subsolo situada a alguns metros abaixo da superfície que não deixa passar a água. A camada isolante é depois compactada e construída, camada a camada, com terra fina e húmida. Em seguida, construímos uma pilha de ambos os lados com uma mistura de terra, coberta de húmus ou de solo superficial que depois é usada para esculpir a paisagem ou para plantação.

Usando este método de construção natural, as bacias de retenção de água estão coerentes com o seu meio envolvente. Após um curto espaço de tempo, a vida aparece nas margens. Por fim, as plantas e, especialmente, as árvores são abastecidas com a água que chega por baixo da terra de acordo com a sua natureza. Desta forma, precisaremos cada vez menos de irrigação artificial e, eventualmente, deixaremos completamente de depender dela.

As forças de apoio
Ao construir Paisagens de Retenção, forças da natureza em abundância estão dispostas a apoiar. Conscientes disto, os futuros engenheiros saberão entrar em contacto com estas forças e saberão pedir a sua cooperação. Existem milhões e milhões de microrganismos que começam a trabalhar imediatamente uma vez que, se apercebem da existência da água mesmo após a época das chuvas. Estes são os nossos melhores parceiros de trabalho. A maior parte deles vive no solo, fora do nosso alcance visual. Estes seres sentem que um processo sustentável de cura, com o qual todos beneficiam, está a ser iniciado. Poderemos não reparar, por algum tempo, nos efeitos das suas acções, mas sabemos que eles existem e que rapidamente iniciam o seu trabalho. Eike Braunroth, um especialista na área de cooperação com a natureza descreve de forma impressionante no seu livro Harmonie mit den Naturwesen (“Harmonia com os seres da natureza”) o que sucede com os animais, até agora considerados como pestes e combatidos de forma correspondente, quando estes são redescobertos como parceiros de cooperação. Ela escreve acerca do exemplo das lesmas, ratos, pulgões, besouros da batata e das carraças:

“A sua ocorrência abundante, a sua reprodução desenfreada, as suas intermináveis orgias de comida no meu jardim e a sua resistência aos meus truques, abriu os meus sentidos para uma consciência diferente da vida. Hoje, todos eles vivem uma existência livre. Mostraram-me do que a natureza é capaz: amizade incondicional.”

No trabalho ecológico que realizamos em Tamera, é fortemente incorporado este aspecto de cooperação. Os pássaros, por exemplo, são parceiros de trabalho imprescindíveis para o processo de reflorestação. Certas sementes têm de passar obrigatoriamente pelo estômago de um pássaro para poderem germinar. Reside aqui uma área fascinante do nosso trabalho e da nossa pesquisa.

Existem também forças de apoio bastante desconhecidas para nós: Dhyani Ywahoo, uma mestre espiritual Cherokee, ensinou-nos que os relâmpagos são um factor importante na revitalização do solo enfraquecido, se este se encontrar suficientemente húmido. No seu livro Voices of Our Ancestors: Cherokee Teachings from the Wisdom Fire (“Vozes dos Nossos Antepassados: Ensinamentos Cherokee do Fogo da Sabedoria”) descreve:

“À medida que os aquíferos se esgotam, a energia dos relâmpagos não tem lugar para onde ser chamada. A actividade dos relâmpagos é o pulsar tal como o pulsar do sistema nervoso que anima o nosso corpo. Desta forma, à medida que os aquíferos se esgotam existe cada vez menos energia disponível para o crescimento e para a vida. Existem também outros efeitos mais subtis da acção dos relâmpagos.”

Sepp Holzer descobriu que os trovões são também uma força de apoio no que diz respeito ao crescimento de diversas espécies de cogumelos comestíveis.
Com estes exemplos, vemos o entusiasmante trabalho de pesquisa que ainda temos pela frente.

Ao estabelecer Paisagens de Retenção, a humanidade entra novamente em cooperação com o espírito da Terra, com o espírito das plantas e dos seres humanos que vivem, ou estão destinados a viver neste espaço. A criação destes sistemas não envolve só conhecimentos de engenharia, envolve também a arte de entrar em contacto com os seres vivos e o reconhecimento de que nós, seres humanos, não somos os únicos seres a habitar o planeta. A Criação foi-nos confiada para que a saibamos percepcionar e estimar. Esta é a tarefa original da humanidade na Terra. É aqui que todo o conhecimento alcançado no passado pelos povos indígenas é reavivado e transferido para a vida moderna.

A PAISAGEM DE RETENÇÃO EM TAMERA
Começamos em 2007 com a construção da primeira bacia de retenção em Tamera. A proposta partiu de Sepp Holzer que, desde há muito, nos apoiava na recuperação natural e na reabilitação do terreno em Tamera. Até então, pensávamos que vivíamos num país seco. Quando Sepp nos deu a conhecer a dimensão da primeira bacia de retenção planeada surgiu a questão de quanto tempo seria preciso para encher de água um buraco tão grande. O “Lago 1”, como é hoje conhecido, situa-se no centro do nosso terreno. A ideia de tomar conta, por anos a fio, de um buraco poeirento e meio vazio, não nos motivara a dar o primeiro passo para a criação da Paisagem de Retenção de Àgua. Depois, para clarificar as dúvidas, surgiu a ideia de calcular a média anual de precipitação na zona de captação da bacia de retenção. Na nossa mente, usámos esta água para encher cubos com um metro cúbico de capacidade, colocando-os um após o outro numa linha e esta linha estendia-se por mais de mil quilómetros, de Tamera a Barcelona. Isto foi o suficiente para abandonarmos a mentalidade de escassez.

Nesse mesmo ano, iniciámos a fase de construção. No primeiro inverno, a água da chuva encheu dois terços do lago e do corpo terrestre adjacente. Após a segunda época das chuvas, com um nível de precipitação abaixo da média, faltavam apenas uns escassos centímetros para encher a totalidade do lago. No terceiro inverno, choveu tanto que poderíamos ter enchido várias outras bacias de retenção. Hoje, apenas quatro anos após o início da construção, é como se nunca tivesse existido aqui outra coisa senão uma bacia de retenção. Várias pessoas que visitam Tamera têm dificuldade em acreditar que este não é um lago natural. Nas margens, criámos também uma paisagem comestível e plantámos milhares de arbustos e árvores de fruto. As lontras e outros animais selvagens começaram a instalar-se aqui. Os pássaros também voltaram: agora temos 93 espécies diferentes de aves em Tamera. Algumas das quais, raríssimas e apenas encontradas em zonas com água em abundância. Já durante o primeiro ano, vimos surgir uma nascente de água que, desde então, tem fluído continuamente.

A construção do Lago 1 foi apenas o princípio. Desde então, temos criado muitas outras bacias de retenção. Em 2011, queremos começar a construção de uma bacia de retenção com o triplo da capacidade do Lago 1. Este passo marcará a transição de uma paisagem com muita água para uma Paisagem de Retenção. Desta forma, o solo poderá absorver a totalidade da média de precipitação ocorrida no inverno. Diversas nascentes irão ganhar forma e o lençol freático irá certamente subir ou, no mínimo, não irá descer. Uma Paisagem de Retenção só se encontra finalizada no momento em que água da chuva a abandonar a terra sem ter sido absorvida deixa de acontecer e em que a única água que flui para o exterior provém de nascentes.

Esta próxima grande bacia de retenção será construída na região mais elevada do terreno. Desta forma, a pressão da água será suficientemente alta para assegurar a irrigação da totalidade do terreno (enquanto esta ainda for necessária), sem termos de despender energia adicional para a bombear. Com a água desta bacia de retenção, situada nesta região elevada, manter-se-á quase constante ao longo do ano o nível de água das restantes bacias de retenção.

Queremos, aqui em Tamera, apresentar um modelo que demonstre como todo o Alentejo e, eventualmente, o mundo poderiam ser. Sem água, não pode haver vida. Refazendo a frase de forma positiva: onde existe água, existe vida. Somos cada vez mais capazes de ver e manter a imagem que emerge diante dos nossos olhos, se nos perguntarmos a nós próprios: como será se vivermos com água e não sem água? A visão do paraíso aproximase de nós e, rapidamente, saímos desta mentalidade de escassez a todos os níveis! Queria concluir com uma citação de Viktor Schauberger. Foi retirada de um texto que este escreveu em 1934 (do livro Das Wesen des Wasser – O Ser da Água):

“Tudo tem origem na água. Deste modo, a água é o recurso natural universal comum a todas as culturas e o fundamento de todo o desenvolvimento físico e mental. A revelação ©Copyleft: Institute for Global Peace Work (IGP) do segredo da água trará consigo o fim de todos os excessos de cálculo ou especulação aos quais pertencem todos os tipos de guerra, ódio, intolerância e discórdia. A extensa investigação da água significa verdadeiramente o fim de todos os monopólios, o fim de toda a dominação e o início de um socialismo que emerge do desenvolvimento do individualismo na sua forma mais perfeita. Se formos bem sucedidos no desvendar do segredo da água, compreendendo como esta pode surgir, seremos então capazes de produzir todas as qualidades da água em qualquer lugar e, então, poderemos tornar férteis as enormes regiões desertas; nesse momento, o valor de venda dos alimentos e da maquinaria associada à sua produção serão tão baixos que a especulação sobre eles perderá todo o interesse.”

Peço-vos que assimilem esta visão. Peço-vos que vejam como os seres humanos estão destinados a assumir uma posição de defesa da vida, e que vejam o papel que a criação de modelos desempenha neste contexto. Alguém que exija de volta os seus direitos humanos exige também de volta os direitos da água, tal como o fez Evo Morales, e entra de novo em cooperação com a natureza e os seus seres. Quando reencontrarmos dentro de nós esta imagem de (re) ligação com a natureza, poderemos então começar a compreender a frase: “Água, energia e nutrição são de acesso livre a toda a humanidade!”. 

É assim que a vida deveria ser.
Obrigado pela atenção.

SOBRE O AUTOR
Bernd Walter Mueller
Nascido a 1962 em Colónia, Alemanha.
Investigador da natureza, especialista na construção de Paisagens de Retenção de Água, permacultor e radiestesista.
Membro de Tamera, um Centro de Pesquisa de Paz, em Portugal, no qual trabalha desde 2007 em estreita cooperação com Sepp Holzer. Hoje, Bernd Müller é o director do Departamento de Ecologia em Tamera, e professor no Campus Global, um centro de treino internacional para trabalhadores para a paz.
Em 1986, abandonou os seus estudos de engenharia no sistema de ensino universitário tradicional, por não encontrar aqui as respostas que procurava.
Começou então o seu próprio negócio, abriu uma loja de produtos naturais, trabalhou em paisagismo e mais tarde, em tratamento de árvores.
Em 1989, emigrou para Serra Nevada, Espanha, onde geriu uma quinta de produção biológica. Aí, encontrou a calma necessária para estudar os processos naturais, através da observação intensiva. Descobriu assim, uma nova e mais subtil cooperação entre o Homem e a natureza.
Hoje transfere a inspiração conquistada neste processo de educação autodidacta, para o desenvolvimento prático de modelos ecológicos que visem a reabilitação das paisagens e a restauração do planeta Terra.

Texto retirado do link: http://www.tamera.org/fileadmin/PDF/WasserSymposium_pt.pdf
Imagem de www.tamera.org